terça-feira, 15 de junho de 2010

Tudo que eu queria te dizer...




 

Oi, Leilinha,

Que imagem feia você tem de mim, minha flor. Todos possuem seu próprio demônio, eu sou o seu. Aliás, eu sou você. Não poderia fazer parte da sua vida como um intruso, você me acolheu ao nascer, somos feitos da mesma matéria. Vai querer me expulsar no bem-bom, justo agora que você é mulher adulta? Pense bem, sua vida ficaria um tédio sem mim. Eu sou o que te faz levantar da cama todos os dias, boba. E o que te faria deitar tantas outras, se você não fosse tão resistente aos meus apelos.


Que vulnerável você está, meu bem. Sofrendo por bobagem. Como se eu fosse seu inimigo. Eu sou a única coisa viva que você tem. Não fosse eu, você seria uma boazinha, uma fofa – pode coisa pior?

Algumas pessoas até conseguem me abafar, mas usam métodos mais eficientes do este seu de pedir – pedir santa ingenuidade! – para eu ir embora. Você não reza, pra começar. Se quisesse mesmo que eu desaparecesse, você rezaria, mas não reza, graças a Deus. Não suporto essa gente que junta as mãos, fecha os olhos, abaixa a cabeça e fica falando baixinho, num cochicho irritante. Elas se matariam em troca de um pecado, quem lhes dera um erro em suas vidas. Inventam que tudo é coisa do demo – coisa minha – para terem do que se orgulhar aos domingos. “Pequei, padre!” Devem achar isto excitante. Que pobreza.

Dessas eu me afasto mesmo, não suporto falsidade. Mas você não reza, princesa, então tem salvação.

Você apenas pede, numa cartinha singela, que eu a deixe em paz. Só faltou escrever “vade-retro”. Mas você não escreveu, não cometeu esse deslize abominável. Você me quer, amada. Você me deseja ardentemente. Você adoraria que eu tomasse conta de você. Pelo menos foi isso que eu entendi naquela sua última frase. Simpatiza comigo? Ora, você me ama. O que demonstra que tem um Q.I. razoável. Vamos namorar?

Agora que você está mais mansinha, vamos deixar de viadagem e ir ao que interessa. Ao que te interessa. Se quiser que eu tome posse, eu tomo. Te ajudo a quebrar os enfeites da casa, a pegar estradas e não voltar, a se deixar seduzir por trombadinhas. Qualquer problema, você joga a culpa em mim, eu seguro a onda.

Mas há maneiras de fazer isto sem tanto estardalhaço. E sem tanto medo. Vem cá, bonitinha, se aproxime.
Há quanto tempo você não se sente mulher? Mulher e demônio são uma coisa só, você sabe. Deixa eu ver este rostinho. nossa, quanta melancolia neste olhar. Você está perdendo as forças de tanto resistir a mim. E eu nem sou tão malvado assim, garota. Meu papel é de apenas estimular a sua liberdade, porque não é possível alguém ser escravo do bom comportamento o tempo todo. Pense bem: você tem a mania irritante de atender a todos os telefonemas, todos. Não atenda. Deixa tocar de vez em quando, não interrompa o que estiver fazendo, mesmo que esteja deitada no sofá olhando pro teto. Não dê atenção ao chato que está chamando. E se você esqueceu o aniverário da sua irmã, esqueceu, ora. Sem drama. Não caia no papo chantagista dela, todo mundo tem o direito de esquecer de algumas datas, mande ela pentear macaco. E quando não estiver com vontade de dizer a verdade, minta. Quer trocar uma tarde de trabalho por um banho de piscina, o que te impede? E se quer ter sexo com alguém diferente, a mesma pergunta: o que te impede? Sou o seu avalista, meu bem.

E pode exagerar na conta. Tenho certeza de que suas fantasias são mais radicais do que estas bobagens que te propus. Você é muito mais imaginativa do que eu, todas vocês são. Quer sumir por uns dias? É só deixar um bilhete, sumirei por uns dias, tem carne congelada na geladeira. Isso da carne congelada vai amenizar o golpe. Tudo o que uma família precisa é ser alimentada. Nem vão dar pelo seu desaparecimento. Puf. Mamãe evaporou.

Enxugue essas lágrimas inúteis, levante este queixo e vá tratar da vida. Faça tudo o que deseja fazer. Você acha que depois de morta vai ganhar bônus? Uma prorrogação para tentar sair desse empate? Esqueça o empate. Vença. Perca. Ofereça a si mesma algum resultado.
É você mesma que assina. E eu.



[Martha Medeiros - Tudo que eu queria te dizer]


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PS¹.: Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
PS².: O texto é INTEGRALMENTE de autoria de Martha Medeiros, mas os grifos são meus.
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